«Diante de um banal fundo preto, Aurélio Vasques fotografou durante quatro meses 128 personalidades ligadas ao fado. O mesmo fundo, o mesmo local, a mesma luz, tudo pensado para um efeito duplo: o de esbatimento de qualquer hierarquia entre fadistas, músicos, poetas, engenheiros de som, estudiosos ou construtores de guitarras; e, por outro lado, o relevo da personalidade individual ampliado por esse espaço comum, neutro, anónimo que cada um habita à sua maneira e onde impõe a sua verdade.
O dispositivo simples montado pelo fotógrafo (e também realizador) resultante na exposição (até final do mês no Museu do Fado, em Lisboa) e no catálogo Álbum de Família tem como intenção direccionar a atenção de imediato para o olhar do retratado. É quase impossível resistir a esse confronto olhos nos olhos, como se desde logo se estabelecesse um diálogo entre espectador e fotografado.
Também por isso, foi preciso convencer cada interveniente a não se deixar intimidar pela câmara e encará-la de frente, numa atitude que baixa a guarda e expõe de forma crua. “Aquele olhar diz tudo e gostava que as pessoas sentissem logo as vidas e a alma de quem está ali”, explica Aurélio Vasques ao PÚBLICO. “Através da conversa que fazia antes com todos eles e das pesquisas que antecediam as sessões fui tentando perceber como poderia mostrar um pouco de cada um no respectivo retrato. Depois, a maneira como se colocam e a forma como o corpo cai diz muito de quem está ali.”
Álbum de Família, mais até do que uma exposição e respectivo catálogo, é um projecto que pretende fixar a galeria daqueles que hoje dão forma ao fado, colocando lado a lado históricos como Carlos do Carmo, Maria da Fé ou Argentina Santos, nomes de ponta de uma geração que já se impôs como Camané, Mariza ou Ana Moura e valores emergentes como Gisela João ou Marco Rodrigues, mas também Hugo Ribeiro (técnico da Valentim de Carvalho que era o homem de confiança de Amália), o baixista Joel Pina, o guitarrista José Manuel Neto, o construtor Gilberto Grácio ou os poetas Maria do Rosário Pedreira e Nuno Júdice.
Nome e data
Nas paredes do Museu houve apenas espaço para dispor 22 retratos quase à escala real, estando a totalidade dos retratados até à data incluída no catálogo – organizado por ordem cronológica das fotos e fornecendo como única informação nome e data da foto. A intenção dessa escassez de dados é clara: havendo aqueles que serão facilmente reconhecíveis do público menos especializado, a curiosidade que qualquer retrato possa despertar sobre alguém menos mediático só ficará satisfeita se o público fizer o seu trabalho de casa e for obrigado a pesquisar e disponibilizando-se para ser surpreendido.
Na sua actividade paralela como realizador, Aurélio Vasques foi registando ao longo dos anos vários videoclips e especiais (para televisão ou DVD) com uma série de fadistas. “Como é lógico, e pelo facto de ir trabalhando na música, fui ouvindo e fui-me apaixonando, e procurando mais, mais e mais”, conta. O primeiro fruto dessa paixão crescente chamou-se Fado, documentário realizado por Vasques juntamente com Sofia de Portugal, em 2012, e em que 12 figuras respondem a um questionário que pretende destapar a sua relação com o fado. De certa forma, é aí que se encontra a raiz de Álbum de Família.
O resto foi consequência de uma vontade de voltar a estudar. Aurélio dedicava-se profissionalmente sobretudo à realização e quis investir numa formação mais aprofundada em fotografia no Atelier de Lisboa, sob a orientação de Paulo Catrica. “Durante os primeiros cinco meses andei um bocadinho perdido, sem saber muito bem o que fazer”, confessa. Depois chegou a uma primeira conclusão de que queria “realizar um projecto com pessoas e em que estivesse inscrita a memória”. Aproveitando as pistas deixadas pelo documentário, dirigiu-se então ao Museu do Fado e à sua directora, Sara Pereira, propondo essa tarefa ambiciosa de compor um álbum de família.
A parceria com o Museu do Fado tornar-se-ia fundamental a partir desse momento, permitindo à lista inicial do fotógrafo acrescentar nomes menos óbvios mas de extrema importância para o meio fadista e que, obrigatoriamente, teriam de constar desta extensa família que canta, toca, escreve, grava, pensa e vive o fado. A lista foi crescendo e o Museu desencadeou os contactos para avançarem com as sessões. Se o projecto não está ainda concluído e pretende continuar a documentar toda esta comunidade, nalguns casos a saúde debilitada obrigou a avançar rapidamente. Beatriz da Conceição, lamenta-se o fotógrafo, já não foi a tempo. Após várias tentativas falhadas, o desaparecimento da fadista no passado mês de Novembro afastou-a desafortunadamente deste conjunto.»
Frota, Gonçalo (2015), "O retrato da família fadista". Público, 09 de Dezembro. Página consultada a 18 de Fevereiro de 2016 <https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/o-retrato-da-familia-fadista-1716839>.
O que muitos não devem saber, é que as fotos de Álbum de Família foram feitas com uma câmara analógica. Com esse pretexto, falámos com o fotógrafo para nos desvendar alguns detalhes deste projecto.
De onde vem o interesse pela fotografia?
O meu interesse pela fotografia vem desde muito cedo. Tive a minha primeira máquina com cerca de 10anos, uma agfa (agfamatic 55C) que ainda hoje tenho. Lembro-me de sair com ela todos os fins de semana e fotografar, principalmente pessoas e a família.
Achas a fotografia um complemento à realização?
Acho que tudo está ligado sim, inicialmente o meu sonho era seguir fotografia, quando vim para Lisboa estudar entrei na área do vídeo e especializei-me em imagem, fiz direcção de fotografia durante alguns anos em publicidade e vídeo clips, mais tarde comecei a realizar. Se dominares a técnica da fotografia é mais fácil depois criar as histórias, acabas por ter mais noção do que é possível fazer ou não com os meios que tens, ficas com os pés mais acentes na terra! A maioria dos realizadores de cinema e publicidade, passaram de certa forma pela imagem, é um processo normal de aprendizagem, de conhecimento, e evolução na área de trabalho.
Que equipamento usas nas fotos de Álbum de Família?
Não foi fácil a escolha, fiz vários testes, várias máquinas, várias hipóteses. O digital foi algo que pus completamente de parte logo à partida. Queria que os retratos tivessem alma, textura, vida, tempo, tudo o que o digital não tem. Claro que o facto de fotografar muito em analógico, de ter filmado também muito em filme, faz com que a paixão pelo analógico fique, e sem duvida que a qualidade é muito superior.
Sabia também que queria fazer printes de grande dimensão, e que precisava de todo o detalhe possível. Apesar do digital já nos poder dar ficheiros muito ricos e com muita resolução a escolha pelo grande formato e neste caso o 4x5 foi fundamental.
O projecto foi todo feito em grande formato, 4x5, usei uma linhof, uma super technika v, uma máquina fantástica que comprei de propósito para o projecto, sempre com a mesma objectiva, uma rodenstock 210mm.
E películas?
Também não foi uma escolha fácil, inicialmente pensei em trabalhar com KODAK T-MAX 100, seria o mais fácil e confortável pois é o filme que habitualmente uso. Mas quando começámos a fazer a lista das pessoas a fotografar, percebi que era muita gente, que ia precisar de muita película, que precisava de ter umas quantas chapas para cada pessoa. É então que surge a ideia de fotografar com ADOX CHS100, um filme bem mais barato que não conhecia, depois de muitos testes, de muitos testes também de revelação com diferentes reveladores o ADOX revelou-se um filme fantástico e de muita qualidade.
Ainda processas os teus filmes? Se sim porque ainda o fazes?
Sim, o bom do analógico é que podemos ser nós a controlar todo o processo. Neste caso, eu queria mesmo controlar tudo, não haver falhas nenhumas, é um projecto grande que tem que ter sempre a mesma linguagem visual, foi um projecto feito em 4meses, foram cerca de 450 chapas. Não podia entregar isto num laboratório, pois a continuidade não seria a mesma, pelo menos nos dias de hoje que o analógico está tão parado. E depois há o lado da rapidez, o fazeres tu, faz com que fotografes hoje, reveles à noite quando chegas a casa e no dia seguinte já podes digitalizar.
Depois de escolhida a câmara e a película há que pensar na revelação. Podes partilhar as escolhas que fizeste ao nível de química e processos?
O processo de escolha foi todo muito em simultâneo. Eu ia fazendo testes com o adox e ao mesmo tempo ia fazendo testes de reveladores para perceber qual a textura que queria. Depois de usares vários reveladores, tanto da KODAK como da adox, cheguei ao resultado que queria, acima de tudo eu queria uma nitidez muito grande com algum contraste mas sempre com informação nas baixas e nas altas luzes e sem grão nenhum. A escolha final foi trabalhar com o KODAK HC-110. Como sabia que ia precisar de revelar muitas chapas e precisava que o processo fosse sempre idêntico, optei por comprar um processador jobo, e foi uma ajuda fantástica, não sei o que seria revelar todo este filme manualmente, seria complicado!
Como foi trabalhar com o JOBO CPP2?
Como disse em cima foi uma mais valia muito grande, eu nunca tinha trabalho com um processador, revelava sempre tudo manualmente. Foi também um investimento que fiz para este projecto, mas realmente foi uma grande mais valia. Depois de ter tudo testado de saber os resultados que queria, foi um descanso a parte da revelação. Bate sempre tudo certo, não há espaço para erros, depois de estar tudo afinado é já saberes o que lá esta antes de veres.
As fotos de Álbum de Família têm um look documental e minimal. Achas que fotografar com uma câmara de grande formato permite maior intimidade entre fotógrafo – fotografado?
A escolha de uma máquina destas para um projecto deste género foi fundamental. Eu fazia 3 a 4 chapas por pessoa, tudo era milimetricamente pensado e trabalhado. Quando temos uma máquina de grande formato é fundamental termos tempo, fazer tudo com tempo, e isso passa para o fotografado, de repente tudo para e durante aquela hora, hora e meia, tudo fica ao tempo da máquina, é maravilhoso!!! Claro que esse tempo acaba por ser uma mais valia para o resultado final porque a entrega é maior, e depois há o facto do fotógrafo não estar escondido atrás de uma máquina, há uma exposição também minha o que ajuda, há um relacionamento um olhar entre fotógrafo e fotografado.
Porque insistes em fotografar com película?
O digital ainda não chega lá, a película é uma coisa orgânica, o digital são zeros e uns. A textura, a latitude, a cor, são únicas, é real, o digital não! Para o tipo de trabalho que faço, é fundamental o filme. O retrato é uma troca de energias entre fotógrafo e fotografado, a matéria é energia se eu quero chegar a um nível mais alto eu preciso de captar essa energia, é essa energia que chega à minha película e que vai formar aquele retrato, é essa energia que vai excitar aqueles sais de prata, no digital não há nada para excitar, a máquina vê uma pessoa da mesma maneira que uma parede!
Referências na fotografia?
É difícil, há muitas referências, há muitos fotógrafos que gosto de todo o seu trabalho há fotógrafos que gosto apenas de certos trabalhos. Há pintura também é difícil. Talvez por uma questão de conceitos, August Sander, Richard Avedon, ou Thomas Struth no caso dos retratos. Mas é difícil, falo no Sander ou no Avedon, pelo conceito que de certa forma eu próprio gostava de trabalhar que é esta ideia de memória e de arquivo.
O que te inspira?
Não sei bem se é inspiração que neste momento me move para fazer o que estou e o que quero fazer. Este conceito de deixar memória, de deixar um registo simples, cuidado mas uniforme das coisas, é algo que me alimenta, as pessoas, talvez seja a minha inspiração.
A exposição está patente no Museu do Fado até 28 de Fevereiro. Passem por lá, porque as fotos foram feitas para ser vistas numa moldura, e não num monitor.
Site do fotógrafo:
http://aureliovasques.wix.com/aureliovasques
http://aureliovasques.wix.com/aureliovasques
Todas as fotografias da autoria de Aurélio Vasques e publicadas com permissão.
Indefinido
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